Não Sou Louca – Recomendação do Filme

Não Sou Louca (em inglês: Call Me Crazy: A Five Film). Filme lançado em 2013 originalmente para a TV americana.

Eletrochoque em manicômios escuros e macabros, contenção mecânica com camisas de força, instrumentos de tortura utilizados por psiquiatras sádicos… Não é de hoje que a Psiquiatria é representada em filmes e no folclore popular com alguns destes exemplos.

A insanidade é tabu, assunto polêmico e reprovável. Parece doença infecto-contagiosa! E, se falar sobre, corre-se o risco de ficar insano também!

Ir ao Psiquiatra? Nem pensar! Psiquiatra cuida de loucos!

A pior coisa que se pode fazer a alguém que sofre de algum transtorno mental é: ser desinformado. A desinformação gera preconceito. Preconceito gera alienação. Torna-se muito mais difícil, para não dizer impossível, a reabilitação de alguém que é deixado às margens.

Atualmente, não é preciso mais deixar aqueles que sofrem de transtornos mentais em depósitos, ou sanatórios, ou manicômios. A Psiquiatria possui arsenal terapêutico capaz de tratar pacientes de forma a permitir a reabilitação de TODOS.

Para aqueles que se interessam pela Psiquiatria, recomendo um belo filme: Não Sou Louca (em inglês: Call Me Crazy: A Five Film, lançado em abril de 2013). Está disponível no Netflix e no YouTube e tem, como tema, os transtornos mentais.

São cinco curtas que, de certa forma, se entrecruzam e abordam as doenças e suas repercussões, aos pacientes em si, e aos seus familiares. Fala, de um jeito bem comovente, sobre a Esquizofrenia, a Depressão, o Transtorno Bipolar e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático.

Sai da mesmice cliché abordada no início deste texto. Em Não Sou Louca, os transtornos psiquiátricos se apresentam de uma forma mais fiel e menos “hollywoodiana”.

Procurarei, nos parágrafos seguintes, falar sobre Não Sou Louca e os transtornos nele representados.

 Esquizofrenia – Lucy

Lucy é uma estudante de Direito e se vê, novamente, em surto psicótico de Esquizofrenia. Na tentativa de provar que seu diagnóstico está errado, deixa de tomar os medicamentos que a estabilizaram. Tal fato lhe rende mais uma internação em Instituição Psiquiátrica.

Por meio da instalação da consciência de morbidade, isto é, o entendimento de que se sofre de alguma coisa, torna-se possível a reabilitação de Lucy. O processo não é fácil, uma vez que, como a própria personagem afirma: “Eu ouço as vozes pelos meus ouvidos” e “Não consigo distingui-las dos meus próprios pensamentos”.

Como criar a consciência de doença se quem sofre de Esquizofrenia realmente percebe seus delírios e alucinações como algo que é real, não passível de contestação?

A resposta está na psicoeducação!

Imagine-se na seguinte situação: você levando sua “vida normal” e lhe obrigam a colocar “goela adentro” um medicamento qualquer. Difícil aceitar, não?

É para isso que se torna necessária a psicoeducação, tanto do paciente quanto dos seus familiares…

O entendimento do porquê se está fazendo uso de algum medicamento é parte do conceito da psicoeducação. O entendimento da doença, suas repercussões, suas causas e forma de tratamento permitem que o tratamento se torne algo palpável para o paciente e para a família.

Quer saber mais sobre a Esquizofrenia? Clique neste link!

A repercussão na família de portador de um transtorno mental – Allison

O entendimento da doença pela família e da necessidade do uso contínuo do medicamento impede que o tratamento seja interrompido no momento em que não é possível ao paciente a consciência de doença.

Sabe-se que, ao evitar que ocorram novos surtos, melhora-se o prognóstico, ou seja, a repercussão no futuro da doença na vida do paciente. Isso significa dizer que os transtornos psiquiátricos acabam por ser, em sua maioria, mais agravados quando não há um suporte psicossocial (presença da família e da comunidade no tratamento).

Neste segmento do filme, é mostrada a mobilização da família de uma pessoa que sofre de algum transtorno mental grave (neste caso, a família da Lucy, do primeiro segmento). E de que forma é complexa e ambivalente a relação dela com sua irmã mais nova, Allison. Allison, que sempre a idealizou, viu-se ameaçada de morte pela irmã, quando em franco surto de psicose.

Tal acontecimento e o foco dos pais, que se passou para o tratamento de Lucy, permitiu que Allison encarasse a doença da irmã com certo distanciamento.

Transtorno Bipolar – Grace

Comportamento sexual de risco, com relação sexual desprotegida e com múltiplos parceiros. Aparência extravagante, com a presença de adornos e roupas muito chamativas. Compras exageradas e desnecessárias, que trazem como consequência o endividamento. Comportamentos de risco, como dirigir em altas velocidades e não ter a consciência de risco.

Discurso acelerado, humor expansivo, eufórico, pressão para falar, necessidade de sono reduzida…

Estes são só alguns dos sinais presentes na fase maníaca do Transtorno Bipolar. Podem durar de semanas a meses, de acordo com a adesão do paciente e da família ao tratamento.

Por outro lado, a fase depressiva do Transtorno Bipolar vem com sintomas de depressão, que podem ser ainda mais graves que a Depressão “unipolar”. As taxas de suicídio em pacientes bipolares são maiores.

A repercussão no contexto familiar ou social é quase sempre catastrófica, principalmente quando o suporte da família é precário. Vê-se, nos olhos de Grace, filha da personagem com Transtorno Bipolar, o desamparo, a impotência e até mesmo a vergonha ao ver sua mãe em surto, porém incapaz de ajudá-la.

Vê-se, também, um contexto social inexistente. Não é vista a presença de familiares, além da filha, que, ao final da história, afirma que está “finalmente saindo de casa”. Isto é provavelmente culpa da doença, que tem o potencial de afastar as pessoas: laços sociais ficam tênues, delicados.

Não faz mal lembrar que a adesão ao tratamento é muito dependente da presença familiar, uma vez que, assim como na Esquizofrenia, a consciência de doença não existe quando em surto.

Quer saber mais sobre o Transtorno Bipolar? Clique neste link!

Depressão – Eddie

Em determinado momento do segmento de Eddie, sua esposa Julia passa a perceber, com preocupação, o retorno dos sinais de que Eddie está novamente deprimido. Pela expressão cansada de ambos, faz parecer que a depressão de Eddie é um transtorno recorrente na vida do casal.

O entendimento de que tristeza é sinônimo de depressão faz com que esta doença psiquiátrica seja vista com preconceito. O fato de estar triste não necessariamente configura depressão.

Depressão é uma síndrome: podem aparecer de sintomas de humor a lesões de pele. Também são diversas as causas, que vêm desde uma deficiência de hormônios da tireóide, a uma predisposição genética e a fatores ambientais.

Se algumas doenças habituais fossem tratadas como algumas pessoas veem a depressão, seria mais ou menos assim:

  • “Eu sei que você está com câncer, mas, vamos lá! Faça uma força e saia dessa cama! Você nem está tentando…”
  • “Vamos! Saia deste estado vegetativo (coma)! Ficar deitado aí não vai ajudar em nada…”
  • “Você precisa esquecer deste corte profundo no seu braço e tudo ficará bem!”
  • “Não precisa ficar tomando remédio todo dia para seu diabetes…”

Estas frases hipotéticas, baseadas neste quadrinho parecem soar absurdas, não? Pois então… Muitas pessoas veem a depressão como uma expressão de preguiça, questão de caráter ou até mesmo uma tentativa de se fazer “chamar atenção”.

São sintomas comuns da depressão:

  • o hipopragmatismo, isto é, falta de iniciativa para alguma atividade, mesmo que prevista ou obrigatória ao paciente (por exemplo, a pessoa ter consciência de que precisa cuidar da sua higiene, de que precisa trabalhar, porém não consegue);
  • a volição prejudicada, ou seja, a falta de vontade;
  • a anedonia, que é a perda da capacidade de sentir prazer (com diminuição de vontade para relações sexuais ou outras atividades prazerosas, como pintar ou andar de bicicleta, antes adoradas pela pessoa deprimida).

Estes sintomas em específico fazem parecer aquilo que foi exposto anteriormente: sinônimo de preguiça, ou falta de vontade de sair daquilo. Quem está deprimido não quer continuar deprimido. Porém, torna-se difícil visualizar alternativas, na medida em que a síndrome configura com os sintomas de “inércia”, ou seja, de falta de motivação.

Por estes motivos, é muito importante a presença de alguém que entenda que Depressão é uma doença e necessita de tratamento. Esta pessoa será a responsável por impulsionar o início do tratamento e permitir que o paciente, após determinado momento, consiga “fazer uma força e finalmente sair da cama”.

Quer saber mais sobre a Depressão? Clique neste link!

Transtorno de Estresse Pós-Traumático – Maggie

Em determinado momento deste segmento de Não Sou Louca, a personagem urina em sua própria roupa ao retomar um momento traumático em sua vida.

Em outro momento, vê-se em um “ataque de fúria”, quando, vividamente, sente-se em risco ao vivenciar os repetidos episódios de abuso sexual que a traumatizaram.

Em situação bastante recente em Vitória, município onde resido, ocorreu o desabamento da área comum (área de lazer e de passagem de pessoas) e do estacionamento de um condomínio. Poderia ter sido uma tragédia caso tivesse ocorrido em horário de grande circulação de pessoas.

O incidente ocorreu às 3h da manhã e teve, como consequência, um funcionário morto, alguns feridos e todos os moradores impossibilitados de voltarem a habitar seus apartamentos.

O fato de não ter sido uma tragédia de maiores proporções, com maior número de casualidades, não isentou os moradores e funcionários dos três edifícios de 29 andares do condomínio a sofrerem do que chamamos Transtorno de Estresse Agudo. É caracterizado pela presença de lembranças fortes e angustiantes do evento, dissociação, ou seja, um sentimento de distanciamento, de entorpecimento, evitação de situações que façam lembrar do evento, problemas no sono e irritabilidade.

Uma minoria dessas pessoas pode manter esses sintomas por mais de um mês, fato que determina o TEPT, ou Transtorno de Estresse Pós-Traumático. O TEPT também vem com autoculpa excessiva, perda de memória para o evento, distanciamento dos outros e incapacidade de sentir emoções positivas. A depressão normalmente acompanha aqueles que sofrem de TEPT.

O que ocorre é uma alteração no hipocampo, estrutura do cérebro responsável por consolidar a memória. Tal fato faz com que sejam incapazes de distinguir um evento inofensivo. O barulho de fogos de artifício ou pessoas que pareçam com o agressor fazem resgatar o evento traumático.

Vivem em constante alerta e vigilância. Sua atenção é direcionada a sinais potencialmente ameaçadores. Esquivam-se de situações que os fazem lembrar do trauma. Imagens intrusivas (flashbacks), ou seja, bem vívidas, aparecem frequentemente. Pesadelos com essas imagens são muito comuns.

Como formas de tratamento, os medicamentos antidepressivos e a psicoterapia Cognitivo-comportamental podem ter algum sucesso na melhora ou atenuação do sofrimento. A taxa de melhora aumenta com a associação de terapias (medicamento e psicoterapia).

Finalizando Não Sou Louca

O segmento final mostra a possibilidade de esperança e renascimento. Nele, é possível verificar que, antes desacreditados, aqueles que sofrem de transtornos mentais podem dar a volta por cima…

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Meu nome é Pedro Henrique. Sou médico formado pela UFES, Psiquiatra clínico formado no Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro, e Psiquiatra da Infância e da Adolescência pelo CARIM-IPUB, da UFRJ. Nasci em Vitória e passei a maior parte da minha vida na ilha.

Fiquei apaixonado pela Psiquiatria no primeiro momento em que pisei no ambulatório, ainda na minha graduação. Percebi que não havia especialidade médica com maior capacidade de aproximação do médico ao seu paciente. Até tentei me aproximar de outras áreas, mas não demorei muito a perceber que seria Psiquiatra, profissão que levaria para o resto da minha vida.

3 respostas

  1. Excelente artigo. Interessante perceber a mudança de sensibilidade no campo da psiquiatria que estamos vivenciando nos últimos tempos e sua importância para a humanização dos tratamentos. Sem dúvida,a psicoeducação é fundamental para a transformação dessa mentalidade.

    1. Obrigado pelo seu comentário, Kátia! Realmente, estamos vivenciando uma mudança de paradigmas, mas ainda há muito o que caminhar para uma melhor humanização e acesso ao tratamento para aqueles que dele precisam. Grande abraço!

  2. Parabéns pelo artigo! Atualmente faz-se imprescindível ajudar as pessoas este olhar humano, empático por estas doenças, a fim de despertar o interesse por como de fato ocorrem e para o quanto os que as têm sofrem e precisam de ajuda!!!

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